DEPOIS DE MUITAS idas e vindas, 14 de dezembro foi enfim um dia de decisão em Brasília: o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, confirmou que a votação da reforma da Previdência ficou para fevereiro de 2018, o que praticamente decretou o fim das atividades no Legislativo. Neste mesmo dia 14, no entanto, o Senado aprovou um belo presente de Natal para o agronegócio: o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR). O projeto de lei, que aguarda a sanção do presidente Michel Temer nos próximos dias, concede uma isenção bilionária a devedores do Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural), um imposto aplicado sobre o comércio da produção agrícola.
Os valores arrecadados por este tributo vão exatamente para os cofres do sistema geral de aposentadoria dos trabalhadores, aquele que o governo diz estar tentando salvar com a reforma.
Entre deputados e senadores ruralistas, o discurso principal foi dizer que o projeto seria um benefício principalmente para pequenos produtores endividados. Os maiores beneficiados, no entanto, tendem a ser outros. Dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), obtidos com exclusividade por The Intercept Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação, revelam que gigantes do agronegócio estão no topo da lista de inscritos na Dívida Ativa do Funrural (cujos prazos de pagamento foram todos esgotados).
A líder do ranking é ela, a JBS, pivô de um dos maiores escândalos de corrupção no país em 2017. Até agosto deste ano, a empresa tinha um débito de R$393,7 milhões. Em segundo lugar na lista, aparece a Tinto Holding LTDA, com R$ 329,5 milhões. A empresa, controladora do frigorífico Bertin, se fundiu em 2009 com a JBS. Ou seja, juntas, as firmas ligadas aos irmãos Batista possuem em Dívida Ativa nada menos do que R$ 723,3 milhões em débitos com o Funrural. O pulo do gato com a aprovação do projeto no Senado é que os devedores poderão parcelar seus débitos em suaves 176 parcelas. E mais: ficam isentos de multas, juros e encargos. Só no caso da Tinto Holding e da JBS, se elas aderirem ao PRR, isso representará um desconto de R$ 225 milhões junto à PGFN.
Ao todo, até agosto deste ano, a soma de todos os valores inscritos em Dívida Ativa do Funrural chegou a R$ 17,6 bilhões. Com a isenção de multas, encargos e juros prevista no projeto de lei aprovado pelo Senado, os devedores que aderirem ao programa de regularização podem ser beneficiados com um desconto total de pouco mais de R$ 4,1 bilhões.
O projeto de lei 165 de 2017 é de autoria do deputado Zé Silva (SD-MG). Em maio deste ano, o parlamentar foi citado na delação de Ricardo Saud, executivo da J&F, controladora da JBS, como beneficiário de R$ 200 mil em espécie na campanha eleitoral de 2014. À época, Zé Silva refutou as acusações. Tanto o deputado quanto a JBS foram procurados, mas não responderam até o fechamento desta reportagem.
Além de prever o parcelamento e a isenção de multas, o texto aprovado determina ainda a redução das atuais alíquotas de cobrança do Funrural. No caso de pessoa física, caso seja sancionado e se torne lei, a cobrança em cima da receita do comércio da produção será de 1,2% em vez dos atuais 2,1%. Para empresas, passará para 1,7% em vez dos atuais 2,5%. Uma curiosidade é que, numa época em que o governo fala tanto em aperto na Previdência, vislumbra dar descontos num tributo que é voltado exatamente para o sistema geral de aposentadoria. Apesar de ter sido criado na década de 1970 especificamente para o setor rural, mais recentemente o imposto voltou-se para os cofres da Previdência geral dos trabalhadores.
Mais frigoríficos e a usina de um político
No topo dos devedores, há outro gigante frigorífico: o grupo Marfrig. Juntas, a Marfrig Global Foods e a MFB Marfrig Frigoríficos Brasil possuem R$ 321,7 milhões em dívidas com a Procuradoria da Fazenda. Em julho deste ano, a empresa foi citada na Operação Cui Bono porque pode ter sido beneficiada por um empréstimo milionário da Caixa, conseguido sob a influência do ex-deputado Eduardo Cunha e do ex-ministro Geddel Vieira Lima, ambos atualmente presos.
A assessoria de imprensa da Marfrig afirmou que a empresa estudará até fevereiro do ano que vem a possibilidade de aderir ao programa de refinanciamento das dívidas com o Funrural. Sobre a Operação Cui Bono, disse que “se trata de uma questão antiga, já investigada e esclarecida pela empresa às autoridades”.
Entre as principais devedoras, também estão muitas firmas já falidas, o que pode dificultar a cobrança dos atrasados pela União. É o caso da Laginha Agro Industrial, ligada ao Grupo João Lyra, pertencente ao ex-deputado federal por Alagoas. A empresa possui uma dívida com a PGFN de R$ 292 milhões. Individualmente, é o terceiro maior valor. Em quinto, com R$ 206,4 milhões aparece o Frigorífico Margen, também falido, que, em 2004, chegou a ter os sócios presos por suspeita de sonegação fiscal.
Até hotéis são devedores
O Funrural vinha sendo alvo de uma intensa disputa na Justiça, mas em março deste ano o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a constitucionalidade do imposto, o que deixou em polvorosa a bancada ruralista. Antes do projeto de lei aprovado pelo Senado, chegou a ser editada uma Medida Provisória, de autoria da deputada Tereza Cristina (sem partido-MS), que acabou caducando sem ser votado. Alguns trechos foram incorporados ao projeto de lei.
De acordo com o texto final que irá para a sanção de Temer, as dívidas até 30 de agosto deste ano poderão ser parceladas com as benesses estabelecidas. Os dados aos quais The Intercept Brasil teve acesso se referem à Dívida Ativa acumulada até o dia 1 de agosto. Os valores totais podem ser ainda maiores porque não levam em conta débitos cujo prazo para pagamento ainda está em andamento.
Como a cobrança do tributo é feita em alguns casos em cima de quem compra a produção agrícola, a lista da Dívida Ativa do Funrural tem, por exemplo, 27 hotéis, com mais de R$ 122 milhões em valores atrasados. O maior devedor é a Rede Othon, com R$ 59,2 milhões, que não retornou os contatos para comentar se irá ou não aderir ao programa de refinanciamento.
Ao todo, há 8.129 inscritos na lista da PGFN. Apenas 103 são produtores rurais individuais, sem CNPJ, inscritos no CEI (Cadastro Específico do INSS). Juntos, eles devem pouco mais de R$ 16 milhões.
Fonte: The Intercept - Brasil