Nov 27, 2024

A história esquecida das “radium girls”, cujas mortes salvaram as vidas de milhares de trabalhadores

 

Em 10 de abril de 1917, uma mulher de 18 anos chamada Grace Fryer começou a trabalhar como pintora de mostradores de relógios na United States Radiation Corporation (USRC), na cidade de Orange, Nova Jersey. Quatro dias antes, os Estados Unidos haviam entrado na Primeira Guerra Mundial. Com dois irmãos em fronts de batalha, Grace queria fazer tudo o que estava ao seu alcance para ajudar o esforço de guerra do país. Mas ela não imaginava que seu novo emprego mudaria sua vida — e os direitos dos trabalhadores dos EUA — para sempre.

As meninas-fantasma

Com a guerra declarada, centenas de norte-americanas da classe trabalhadora correram para a fábrica onde pintariam relógios e seletores militares com o elemento químico rádio, que tinha sido descoberto por Marie Curie pouco menos de 20 anos antes.

Esse tipo de ocupação era um “trabalho de elite para as pobres meninas trabalhadoras”, já que pagava mais que três vezes o salário médio de uma fábrica — proporcionando independência financeira para as mulheres numa época em que começava a surgir o empoderamento feminino. Muitas eram adolescentes, com mãos pequenas, perfeitas para o trabalho artístico. A oportunidade era tão boa que as meninas divulgavam o seu trabalho para suas redes de amigas e familiares. Muitas vezes, irmãs trabalhavam lado a lado na fábrica.

A luminosidade do elemento rádio também fazia parte do fascínio, e as pintoras de mostradores logo ficaram conhecidas como as “meninas-fantasma” — quando seus turnos terminavam, elas estavam brilhando no escuro. Elas aproveitavam esse “privilégio”, usando vestidos de festa durante o trabalho para que eles brilhassem à noite, nos salões de baile. As meninas chegavam a pintar os dentes com rádio, para ficar com um sorriso capaz de nocautear seus pretendentes.

Grace e suas colegas seguiam obedientemente a técnica que tinham aprendido para pintar os minúsculos mostradores, alguns dos quais com apenas 3,5 centímetros de diâmetro. Elas eram instruídas a passar os pincéis entre os lábios para fazer uma ponta fina — “passar o pincel no lábio, na tinta e pintar”, era como se chamava o movimento —, como descreveria mais tarde a dramaturga Melanie Marnich. Cada vez que as meninas levavam os pincéis à boca, engoliam um pouco da tinta verde brilhante.

Verdade e mentiras

“A primeira coisa que perguntamos foi: ‘Isso faz mal?’”, lembrou mais tarde Mae Cubberley, que ensinou a técnica a Grace. “Obviamente, você não quer colocar na boca algo que faça mal. O Sr. Savoy [o gerente] disse que não era perigoso, que não precisávamos ter medo.”

Mas não era verdade. Desde que o elemento brilhante fora descoberto, seus efeitos nocivos eram conhecidos; a própria Marie Curie tinha sofrido queimaduras por radiação. Havia registros de morte por contaminação de rádio antes de a primeira pintora de mostradores pegar num pincel. Por isso, os homens das empresas de rádio usavam aventais de chumbo em seus laboratórios e manipulavam o rádio com pinças de marfim. No entanto, as pintoras de mostradores não receberam a mesma proteção nem sequer foram avisadas de que ela era necessária.

Isso aconteceu porque, naquela época, acreditava-se que uma pequena quantidade de rádio — como a manuseada pelas meninas pintoras — fosse benéfica para a saúde: as pessoas bebiam água de rádio como um tônico e era possível comprar cosméticos, manteiga, leite e pasta de dente com o maravilhoso novo elemento. Os jornais diziam que o rádio “acrescentaria anos às nossas vidas”.

No entanto, essa crença se baseava em pesquisas conduzidas pelas mesmas empresas que lucravam com um negócio nascente — e que ignoravam todos os sinais de perigo.

 
 
 

A primeira morte

Em 1922, uma das colegas de Grace, Mollie Maggia, teve que sair do emprego porque estava doente. Ela não sabia o que tinha de errado com ela. Seu problema começou com uma dor de dente. O dente fora arrancado por um dentista, mas então o dente ao lado também começou a doer e teve de ser extraído. No lugar dos dentes perdidos, brotaram feridas, que cresciam vermelhas e amarelas com sangue e pus. Depois, as feridas supuravam deixando Mollie com um hálito terrível. Mais tarde, a jovem passou a sofrer dores tão fortes no corpo que não conseguia mais caminhar. O médico achou que era um caso de reumatismo e a mandou para casa com aspirina.

Em maio de 1922, Mollie estava desesperada. Àquela altura, ela já tinha perdido a maior parte dos seus dentes e a misteriosa infecção se espalhara: toda sua mandíbula, seu céu da boca e até mesmo alguns dos ossos de suas orelhas tinham virado “um grande abscesso”. No entanto, o pior ainda estava por vir. Quando seu dentista cutucou delicadamente sua mandíbula, para seu horror e choque, o osso quebrou contra seus dedos. Ele o removeu, “não com uma operação, mas apenas tirando-o com os dedos”. Dias depois, a mandíbula inteira de Mollie foi removida da mesma maneira.

Mollie estava literalmente caindo aos pedaços. E ela não era a única; Grace Fryer também estava tendo problemas com sua mandíbula e sentindo dores nos pés, assim como outras “radium girls” [meninas do rádio].

Em 12 de setembro de 1922, a estranha infecção que atormentava Mollie Maggia havia menos de um ano se espalhou para os tecidos de sua garganta. A doença lentamente comeu sua jugular. Às 17h daquele dia, sua boca estava inundada de sangue; a hemorragia era tão forte que os enfermeiros não conseguiram controlá-la. Mollie morreu aos 24 anos. Com os médicos desconcertados sobre a causa da morte, seu certificado de óbito, erroneamente, disse que ela tinha morrido de sífilis, o que depois seria usado contra ela por sua antiga empresa.

Uma por uma, as ex-colegas de Mollie a seguiriam até o túmulo.

O acobertamento

Durante quase dois anos, a USRC, a empresa em que as meninas trabalhavam, negou qualquer responsabilidade pelas mortes. Depois de observar uma desaceleração em seus negócios graças ao que chamava de “boatos”, em 1924 a empresa finalmente pediu que um especialista investigasse a ligação entre o trabalho de pintar os mostradores e as mortes das mulheres.

Ao contrário das pesquisas da própria empresa sobre os supostos benefícios do rádio, o estudo foi independente. Quando o especialista confirmou a ligação entre o rádio e as doenças das mulheres, o presidente da empresa ficou indignado. Em vez de aceitar os resultados, pagou novos estudos, que chegaram a conclusões opostas. Além disso, ele também mentiu para o governo americano — que tinha aberto uma investigação — sobre o veredicto do relatório original. Publicamente, o presidente da empresa afirmou que as mulheres estavam tentando “tirar vantagem” de suas doenças e as condenou por buscarem ajuda financeira da companhia para suas despesas médicas.

A luz que não mente

Com o relatório silenciado, o maior desafio das mulheres passou a ser provar a ligação entre suas doenças misteriosas e o rádio que elas estavam ingerindo centenas de vezes ao dia. Embora suspeitassem que a culpa residia no tipo de trabalho que realizavam, elas lutavam contra a crença generalizada de que o rádio era seguro. Na verdade, foi só depois da morte do primeiro funcionário homem da USRC que os especialistas finalmente admitiram a verdade. Em 1925, um médico chamado Harrison Martland criou testes que provaram de uma vez por todas que o rádio tinha envenenado as mulheres.

Martland também explicou o que estava acontecendo dentro dos corpos das garotas. Já em 1901, era evidente que o rádio poderia ser prejudicial aos seres humanos quando aplicado externamente. Certa vez, Pierre Curie comentou que não gostaria de estar no mesmo recinto que um quilo de rádio puro, pois acreditava que ele queimaria toda a pele de seu corpo, destruiria sua visão e “provavelmente o mataria”. Martland descobriu que, quando o rádio era ingerido, mesmo em pequenas quantidades, o dano era milhares de vezes maior.

O rádio, quando ingerido, se instalava nos corpos das mulheres e emitia uma radiação constante e destrutiva, que “alvejava” seus ossos. A radiação do elemento químico estava literalmente furando as meninas vivas. Todo o corpo era atacado: a espinha dorsal de Grace Fryer foi “esmagada”, e ela teve de usar um suporte de coluna de aço para sustentá-la; a mandíbula de outra menina foi devorada e virou um “mero toco”. As pernas das mulheres encurtavam e apresentavam fraturas espontâneas.

Sinistramente, os ossos danificados também começaram a brilhar. Às vezes, as mulheres percebiam que tinham sido envenenadas pelo rádio quando se miravam no espelho à noite — e viam refletidas garotas-fantasma, brilhando com uma luminosidade não-natural que selaria seus destinos.

Isso porque Martland também percebera que o envenenamento era fatal. Não havia maneira de remover o rádio do corpo das meninas.

Vista frontal e lateral de uma pintora de mostradores com um sarcoma induzido pelo rádio. Coleção de Ross Mullner

A luta

Apesar das tentativas da indústria do rádio de desacreditar o trabalho pioneiro de Martland, a empresa não contava com a coragem e a tenacidade das próprias meninas. Elas começaram a se unir para lutar por justiça. A batalha tinha um senso de urgência — afinal de contas, pintoras de mostradores de relógio ainda trabalhavam em todos os Estados Unidos. “Não estou pensando em mim”, comentou Grace Fryer. “Estou pensando nas centenas de garotas para quem isso pode servir de exemplo.”

Foi Grace quem liderou a luta, determinada a encontrar um advogado, mesmo depois de ouvir várias negativas — seja porque os advogados não acreditavam nas reivindicações das mulheres, seja porque eles temiam as poderosas corporações de rádio ou simplesmente por eles estarem despreparados para uma batalha legal que exigiria a revogação da legislação existente.

Naquela época, o envenenamento por rádio não era uma doença indenizável — ela não tinha sido descoberta até que as meninas ficaram doentes —, e as mulheres também tinham problemas com os prazos legais: as vítimas de intoxicação ocupacional tinham de dar início aos processos judiciais em até dois anos. A intoxicação pelo rádio era insidiosa: a maioria das meninas não começou a apresentar sintomas até pelo menos cinco anos depois de começarem a trabalhar. Em suma, elas estavam presas em um círculo vicioso jurídico aparentemente sem solução. No entanto, Grace era a filha de um representante sindical e estava determinada.

Grace Fryer CHR, National Archives, Chicago

Finalmente, em 1927, um advogado chamado Raymond Berry aceitou o caso. Grace (junto a quatro colegas) viu-se então no centro de um drama judicial que ficaria internacionalmente famoso. No entanto, o tempo estava se esgotando: as mulheres tinham apenas quatro meses de vida, e a empresa parecia empenhada em arrastar o processo. Como conseqüência, Grace e suas amigas foram forçadas a fazer um acordo. Apesar disso, elas conseguiram chamar a atenção para a intoxicação por rádio, exatamente como Grace planejara.

O caso das “radium girls” de Nova Jersey foi manchete nos jornais e provocou mudanças em todos os Estados Unidos. Em Ottawa, Illinois, uma pintora de mostradores de relógio chamada Catherine Wolfe leu a cobertura horrorizada. “Houve reuniões na [nossa] fábrica que quase acabaram em tumulto”, lembrou ela. “O medo era tão forte que mal podíamos trabalhar.”

No entanto, a empresa de Illinois, a Radium Dial, fez o mesmo que a USRC e negou sua responsabilidade. Embora os testes médicos da empresa provassem que as mulheres de Illinois estavam mostrando sintomas claros de envenenamento por rádio, a companhia mentiu sobre os resultados. A empresa chegou a publicar um anúncio de página inteira no jornal local: “Se tivéssemos qualquer razão para acreditar que as condições de trabalho estão pondo em risco a saúde de nossos funcionários, teríamos imediatamente suspendido as operações”. Para abafar o escândalo, a empresa chegou a interferir nas autópsias das meninas mortas: funcionários da companhia roubaram ossos na tentativa de encobrir o problema.

Fazendo história

As mulheres que não foram mortas pelos mesmos problemas de mandíbula que acometeram Mollie Maggia acabaram tendo sarcomas — grandes tumores ósseos cancerígenos que apareciam em qualquer lugar de seus corpos. Uma das pintoras, Irene La Porte, morreu de um tumor pélvico massivo “maior que duas bolas de futebol americano”.

Em 1938, Catherine Wolfe (Donohue após seu casamento) desenvolveu um tumor de tamanho de uma toranja no quadril. Como Mollie Maggia, ela perdeu os dentes e teve que tirar pedaços da mandíbula; além disso, ela tinha de segurar permanentemente um lenço para absorver da boca. Catherine também tinha visto suas amigas morrendo, e isso aumentou sua determinação.

Catherine começou sua luta por justiça em meados da década de 1930: os EUA estavam então na Grande Depressão. Ela e suas amigas foram criticadas por suas comunidades por processar uma das poucas empresas que tinham ficado de pé após a crise. Embora prestes a morrer quando seu caso foi à corte, em 1938, Catherine ignorou o conselho dos médicos e prestou seu testemunho em seu leito de morte. Ao fazê-lo, e com a ajuda de seu advogado, Leonard Grossman (que trabalhou sem receber remuneração), ela finalmente obteve justiça: não só para si mesma, mas também para todas as outras trabalhadoras afetadas.

Em seu leito de morte, Catherine Donohue presta depoimento. Chicago Daily Times / Sun-Times Media

O legado

O caso das “radium girls” foi um dos primeiros em que uma empresa foi responsabilizada pela saúde de seus funcionários. Isso levou a regulamentações que salvaram vidas e, em última análise, ao estabelecimento da Occupational Safety and Health Administration (OSHA), órgão do governo federal americano que regula as condições de segurança do trabalho. Antes da criação da OSHA, 14 mil pessoas morriam no trabalho todos os anos; hoje, são pouco mais de 4.500. As mulheres também deixaram um legado para a ciência que é chamado de “inestimável”.

No entanto, você provavelmente não vai encontrar os nomes delas nos livros de história, porque hoje elas foram esquecidas.

Com base nas palavras dessas mulheres — em seus diários, em suas cartas e em seus testemunhos —, meu novo livro, “The Radium Girls” [sem edição em português], tenta recuperar essa história — porque foi graças à força dessas garotas, seu sofrimento e seu sacrifício que os direitos dos trabalhadores foram conquistados nos EUA. Todos nós nos beneficiamos da coragem delas.

Greer Fryer e Catherine Donohue — para citar apenas dois nomes — são mulheres que precisamos honrar e saudar como heroínas. Elas brilham através da história com tudo o que conquistaram em suas curtas vidas. E elas também brilham de outras maneiras. Porque o elemento rádio tem uma meia-vida de 1.600 anos… e ainda está impregnado em seus ossos. Por um bom tempo, as meninas-fantasma continuarão brilhando em seus túmulos.

Esse texto foi extraído do site BuzzFeed

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