O neoliberalismo murcha no resto do mundo, a Rússia segue os passos da China e da Índia, enquanto o Brasil corre em direção ao tempo das cavernas (Foto: Shana Reis/ GERJ)
por Carlos Drummond, na Carta Capital
Embalado por manobras políticas para garantir o impeachment e pela maquiagem midiática da situação deplorável da economia, o governo Michel Temer acelera o plano de liquidação de ativos estratégicos para o desenvolvimento.
Os últimos avanços contaram com a ajuda da Justiça, que liberou a Petrobras para vender a BR e a Gaspetro como quiser, isto é, sem salvaguardas para os acionistas minoritários e com prejuízos imensuráveis ao País. Esperar qualquer arrefecimento da escalada é perda de tempo.
A agenda do ministro das Relações Exteriores, José Serra, previa um encontro, na sexta-feira 25, com Andrew Brown, vice-presidente mundial da Royal Dutch Shell, e André Araujo, presidente da Shell Brasil Petróleo.
Na pauta, segundo funcionários do ministério, as perspectivas de avanço do projeto do tucano para eliminar o protagonismo da empresa pública no pré-sal e da participação do megagrupo estrangeiro nessa área de petróleo e gás.
A estratégia privatista e desnacionalizante é, entretanto, anacrônica, mostra a crítica cada vez mais intensa ao neoliberalismo e à austeridade na Europa e nos Estados Unidos e a adoção recente, pela Rússia, de um plano nacional-desenvolvimentista.
Agora o Brasil é o único dos quatro maiores integrantes dos BRICS em marcha à ré acelerada rumo à desregulamentação, privatização, desnacionalização e corte de direitos sociais. A potência do Leste Europeu decidiu seguir a política econômica de China e Índia, os campeões mundiais de crescimento.
A dilapidação do pré-sal e da Petrobras está no centro do business plan de peemedebistas e tucanos, que buscam dissimular o poder devastador das suas propostas. O presidente da companhia, Pedro Parente, apresentou no começo do mês explicações técnicas insustentáveis na tentativa de justificar a desnacionalização do primeiro campo de petróleo daquela camada, o de Carcará, acusa Luciano Seixas Chagas, coordenador do grupo de trabalho para assuntos de petróleo da Federação Brasileira de Geólogos.
Ex-funcionário da companhia, o geólogo, ao contrário do executivo, é um especialista reconhecido no setor e explica, na entrevista abaixo, por que o volume potencial de óleo e gás é mais de quatro vezes superior ao contabilizado na venda à norueguesa Statoil, há um mês. A Febrageo e a Federação Nacional dos Engenheiros acionarão na Justiça a diretoria pela venda daquele que seria, segundo Parente, “um campo de menor interesse”.
O passo decisivo para o desmanche da Petrobras é o projeto de Serra para retirar seu poder no pré-sal, aprovado no Senado e em tramitação na Câmara. O marco regulatório em vigor, sancionado em 2010, estabelece a empresa pública como operadora única sob o regime de partilha da produção, o que dá ao governo brasileiro a propriedade do óleo e do gás extraídos.
É importante manter essa condição, porque só assim continuará no comando de todo o processo de definição de tecnologia e projetos de engenharia a serem utilizados, explica Guilherme Estrella, ex-diretor de Exploração e Produção.
Geólogo de renome mundial, integrou as equipes que fizeram as grandes descobertas no Iraque e no pré-sal, em 2007, no governo Lula. Esse privilégio do operador, diz, confere-lhe o poder de definir também “um imenso conjunto de materiais e equipamentos utilizados na construção, implantação, operação e manutenção dos grandes sistemas de produção de óleo e gás”, geradores de encomendas para a indústria local.
O conjunto das prerrogativas atuais da Petrobras, destaca Estrella, propicia ao governo brasileiro todas as condições de elaborar um projeto nacional de desenvolvimento industrial autônomo e soberano, inteiramente sustentável.
Só com a Petrobras na condição de operadora única do pré-sal o governo tem a propriedade do óleo e do gás, alerta Estrella (Foto: Wilton Junior/Estadão Conteúdo)
“Adiciona-se a esta extraordinária oportunidade estratégica o rico conteúdo em gás natural do pré-sal, para suprir com abundância a demanda da indústria e do consumo doméstico e fornecer matéria-prima para a fabricação de fertilizantes, outra fragilidade nacional na medida em que o importantíssimo agronegócio, uma das principais sustentações de nossa economia, depende da importação daqueles produtos.” Além disso, é rico em insumos básicos para a petroquímica e fundamental à geração termoelétrica, decisiva para impedir “apagões”.
Em vez de aprofundar a condução neoliberal em crise no mundo avançado, o País deveria se inspirar na decisão do primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, que no mês passado determinou ao think tank heterodoxo Stolypin a preparação, até o próximo trimestre, de um plano quinquenal para a retomada do desenvolvimento econômico.
Depois de dois anos de desempenho declinante sob uma taxa de juros de 10,5%, Putin concluiu que, com aquele custo de financiamento, é impossível sair do atoleiro. O que dizer da situação do Brasil, entalado há mais de um ano em uma taxa Selic de 14,25%?
O plano visa à soberania econômica e ao crescimento de longo prazo, a imunização do país aos choques externos e à influência estrangeira excessiva, a retirada da Rússia da periferia e sua inserção no centro do sistema econômico global.
Os objetivos incluem o aumento do produto industrial em 30% a 35% dentro de cinco anos, a criação de uma economia do conhecimento socialmente orientada com a transferência de recursos substanciais à educação, à saúde e à proteção social, a criação de instrumentos para aumentar a poupança nacional em relação ao PIB e a transição para uma política monetária soberana. Nada mais distante da regressão promovida pelo governo.
O plano desenvolvimentista de Putin visa a soberania econômica com o aumento da produção industrial entre 30% e 35% (Foto: Jussi Nukari/AFP)
A Rússia segue a tendência mundial mais avançada. Agências internacionais e economistas renomados convergem no diagnóstico que reconhece na orientação neoliberal uma das principais causas da devastação iniciada em 2008.
Um relatório da Organização das Nações Unidas sobre a situação econômica global e as perspectivas para 2016 identificou um declínio de 54% na taxa média de crescimento nos países desenvolvidos nos últimos sete anos. O total de desempregados aumentou para 44 milhões, com um acréscimo de 12 milhões de indivíduos desde 2007.
“Mais preocupante ainda, as taxas de crescimento tornaram-se também mais voláteis. Isso é surpreendente porque, com as contas de capital totalmente abertas, eles deveriam ter se beneficiado do fluxo livre de capital e do compartilhamento internacional do risco e, assim, experimentado pequena volatilidade macroeconômica”, destacam os economistas Joseph Stiglitz e Hamid Rashid, em artigo recente.
A sua conclusão dá mais razão ainda aos defensores do controle da conta de capital nos países emergentes. A contração fiscal e o quantative easing, ou compra, pelos bancos centrais, de títulos públicos e consequente abarrotamento do mercado com dinheiro “proporcionaram pouco suporte ao estímulo do consumo das famílias, ao investimento e ao crescimento. Ao contrário, pioraram as coisas”, concluem os especialistas.
O alerta de Stiglitz e Rashid vale para países desenvolvidos e emergentes, mas não se espera muita receptividade por aqui.
O geólogo Seixas Chagas arrasa as explicações "técnicas" da entrega de 6 bilhões de barris de óleo e gás como se fossem apenas 1,3 bilhão
O presidente da Petrobras, Pedro Parente, disse que vendeu o bloco exploratório BM-S-8 do pré-sal, com o poço de Carcará, à norueguesa Statoil, porque algumas das suas características “não eram interessantes”.
O coordenador do grupo de trabalho da Federação Brasileira de Geólogos para Assuntos de Petróleo, Luciano Seixas Chagas, ex-funcionário da empresa pública e renomado especialista no assunto, demoliu as explicações de Parente na entrevista abaixo:
CartaCapital: Algumas características do campo vendido não seriam "interessantes", segundo o presidente da Petrobras. Isso é verdadeiro?
Luciano Seixas Chagas: As diretorias técnicas da empresa, principalmente a da área de exploração comandada pela engenheira Solange Guedes, sabem que os números são bem maiores do que o 1,3 bilhão de barris negociado.
Em primeiro lugar, porque nenhum dos três poços atingiu o contato óleo/água, o que denuncia ser área de acumulação muito maior que a delimitada por esses poços. Além disso, o gráfico de pressão plotando o gradiente do petróleo dos três poços, junto ao gradiente da água salina, demonstra que a primeira assertiva é verdadeira, ou seja, a área do reservatório é muito maior que a delimitada pelos poços perfurados.
Os testes de interferência realizados mostram que os reservatórios são comunicados e têm, portanto, continuidade hidráulica, com comunicação pelo espaço entre os poros e fraturas, sendo essas abundantes na área de Carcará.
Acrescente-se ainda que os fluidos oriundos do manto profundo aumentaram, por dissolução, o sistema poroso original. É possível que só na sua estrutura estejam acumulados 6 bilhões de barris recuperáveis de óleo e gás equivalente. Isso somente no bloco BM-S-8.
CC: As características condenadas por Parente são elevadíssima pressão, necessidade de sair do padrão dos demais campos da empresa e desenvolver equipamentos novos e mais caros. Alegou também a grande distância das outras operações e exigência de construção de um novo gasoduto.
LSC: Diante dos imensos volumes recuperáveis nos polos atuais e em Carcará, os dutos agora projetados e em execução já seriam, de todo modo, insuficientes. Portanto, a alegada grande distância entre os projetos é falaciosa.
Os novos dutos obviamente seriam mais caros. Suportariam elevadas pressões, podem ser projetados com maior capacidade de transporte e de interligação dos dois polos principais, além de outros menores.
A tecnologia é dominada pelo mercado, não há necessidade de novas pesquisas, só adaptações. Dizer que serão gerados custos adicionais devido às modificações do sistema de produção, escoamento e infraestrutura é açodamento.
CC: Por quê?
LSC: O que a princípio parece verdade pode ser justamente o contrário. O petróleo de Carcará tem pressão 50% superior aos das redondezas, baixa densidade e alta mobilidade, não tem CO2 e tampouco o H2S corrosivos, o óleo é leve e tem elevada razão de solubilidade.
Isto significa que há muito gás em solução a ser produzido com o óleo. Em razão da grande espessura dos reservatórios, o projeto usaria poços verticais ou inclinados, muito mais baratos que os horizontais.
Se, por um lado, os equipamentos de perfuração e complementação dos poços serão mais caros, por outro, com as suas elevadas vazões e pressões os reservatórios de Carcará produzirão por muito mais tempo, tornando o projeto de implantação ainda mais econômico.
*Reportagem publicada originalmente na edição 916 de CartaCapital, com o título "Marcha à ré acelerada".