Pesquisa do Instituto de Economia demonstra que brasileiros estão cada vez mais atrelados ao trabalho.
Embora a jornada de trabalho tenha sofrido, a partir de 2004, uma significativa redução no país, muitas evidências indicam que os brasileiros estão cada vez mais atrelados ao trabalho. A constatação faz parte da dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp pelo economista Eduardo Martins Ráo. De acordo com ele, há uma tendência em curso no Brasil, fomentada pela classe empresarial, de criar mecanismos para transformar tudo em hora de trabalho, até mesmo os momentos em que o trabalhador está em casa, na companhia da sua família. “Para alguns setores isso seria mais difícil de acontecer, dadas suas especificidades. Mas é o que o capital, no geral, quer. Isso está colocado de maneira velada para a sociedade, mas aparece claramente nas relações entre empresas e sindicatos”, afirma o autor do trabalho, que foi orientado pelo professor José Dari Krein.
A reportagem é de Manuel Alves Filho e publicada pelo Jornal da Unicamp, 28 de abril de 2014 a 11 de maio de 2014.
O estudo desenvolvido por Ráo toma para análise o intervalo entre os anos de 1992 e 2009. Segundo ele, os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) apontam para a ocorrência de três padrões relacionados à dinâmica da economia e do mercado de trabalho nesse período. O primeiro, que vai de 1992 a 1998, é representado pelo alongamento da jornada de trabalho em todos os setores, ramos de atividade e ocupações. “Um dado interessante é que a jornada já era extensa antes mesmo desse movimento. Enquanto em países comoAlemanha, Austrália, Bélgica e Canadá a jornada ficava abaixo de 1.800 horas por ano, aqui ela já superava 2.000 horas. Ou seja, nos anos 90 ela não somente anda mais estendida, como também começou se tornar mais flexível. Trata-se, segundo a hipótese que defendo na dissertação, do surgimento de uma nova jornada”, explica o economista.
Ráo assinala que esse movimento ocorreu a despeito da promulgação da Constituição de 1988, que introduziu dispositivos voltados à regulação do tempo de trabalho. “Na prática, porém, essa regulação não ocorreu. Para driblar a legislação, as empresas passaram a utilizar o mecanismo da hora extra, ainda que ela tenha sido onerada. Assim, os anos 90 começaram dentro dessa realidade. Dados do Censo de 1991 revelaram, por exemplo, que naquele ano 40% da população economicamente ativa cumpria horas excepcionais. Em 1980, a título de comparação, esse índice era de somente 28,5%”, argumenta.
A partir de 1995, num contexto de altas taxas de desemprego, prossegue o economista, surgiram fatores que concorreram para a manutenção da jornada alongada, tais como: o just in time, a polivalência, os trabalhos em grupo, as metas de produção atreladas a PLR, o banco de horas, o trabalho a tempo parcial e aos domingos e feriados, a terceirização, a recomposição das escalas e turnos de revezamento, os sistemas de controle de qualidade e outros mecanismos mais sofisticados de controle do ritmo de trabalho. “Como se tratava de um momento delicado do ponto de vista da economia e do emprego, as centrais sindicais se viram sem condições de colocar a questão da redução da jornada na mesa de negociação com o setor empresarial. Naquele momento, o esforço maior era pela preservação do emprego”, lembra.
O segundo padrão registrado no período tomado para investigação por Ráo ficou circunscrito aos anos de 1999 a 2003. Neste, a jornada de trabalho se manteve estagnada, mas num patamar elevado. Naquele instante, 39,6% da população economicamente ativa declarou cumprir horas excepcionais. Isso se deveu, conforme o autor da dissertação de mestrado, a uma mudança ocorrida no mercado de trabalho, provocada por um cenário que mesclava a forte desvalorização da moeda com o baixo desempenho da economia. “Nessa circunstância, o emprego cresceu pouco. A desvalorização da moeda fez com que o governo demonstrasse maior disposição em utilizar mecanismos políticos para fazer frente ao ajuste fiscal. Entre as medidas adotadas, estava a maior fiscalização das empresas. Uma consequência dessa ação foi o aumento gradativo da formalização, o que fez com que a jornada de trabalho se mantivesse dentro das normas legais para quase 1/3da população economicamente ativa”, detalha.
O terceiro e último padrão, registrado no intervalo de 2004 a 2009, é marcado pela já mencionada redução da jornada de trabalho. O patamar das horas extras cumpridas pelos trabalhadores ao longo do período caiu de 38% para 31,8%. “A jornada de trabalho tornou-se cada vez mais padronizada, permanecendo assim dentro das normas constitucionais [44 horas semanais]. Vale destacar que isso ocorreu de maneira generalizada. Ou seja, alcançou todos os setores, posições e ocupações. A interpretação que nós fizemos é que a retomada do crescimento econômico repercutiu tanto na criação expressiva de empregos formais como também no aumento da formalização das relações de trabalho. E a isso, soma-se ainda a hipótese de que alguns setores da população decidiram trabalhar menos, algo que fica mais claro quando olhamos para o trabalhador autônomo, que também reduziu seu tempo de trabalho”.
Flexibilização
Atentas a esse fenômeno, observa Ráo, as empresas não perderam tempo em ampliar os mecanismos de flexibilização para manter seus empregados cada vez mais conectados ao trabalho, ainda que a jornada tenha sido reduzida em relação ao início dos anos 1990. “Esses mecanismos aparecem na forma de metas a serem cumpridas ou de tarefas que são levadas para casa. Ainda insatisfeitos, os empresários trabalham agora para que essas medidas sejam legalmente efetivadas, envolvendo as novas formas de controlar o tempo do trabalhador. Para os empregadores, a ideia é transformar tudo em tempo de trabalho, mesmo os instantes em que o empregado está em casa, com a família”, adverte o economista.
Apesar da movimentação do setor empresarial, Ráo considera que a conjuntura atual foi favorável à retomada da discussão, por parte da classe trabalhadora, da redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, com a consequente manutenção dos salários. “A oportunidade está aberta. Em 2003, as centrais sindicais fizeram uma campanha nesse sentido, que chegou a ser transformada em projeto de lei, mas que não foi votado pelo Congresso”.
O autor da dissertação avalia, ainda, que alguns fatores contribuem para uma discussão mais qualificada em torno da redução tanto da jornada quanto do tempo de trabalho. Ele destaca que boa parte da população economicamente ativa está estudando mais. Na opinião de Ráo, é possível pensar em um mecanismo que estenda o período de formação dos jovens, que passariam a ingressar no mercado de trabalho um pouco mais tarde, entre 25 e 27 anos. “Ao mesmo tempo, também é possível pensar num modelo que retire as pessoas mais cedo do mercado de trabalho, embora essa medida seja um pouco mais complicada, em razão do impacto que causaria na Previdência Social. Entretanto, não podemos deixar de considerar que, em 20 anos, o país terá um número elevado de idosos. O que vamos querer: um conjunto grande de idosos pobres trabalhando ou uma população idosa em uma posição mais confortável em termos de rendimento, que não trabalhe?”, indaga.
Ráo reconhece que esse pensamento trafega na contramão de um movimento em curso, cujo objetivo é ampliar o tempo de trabalho com vistas à aposentadoria. Há propostas, inclusive, de igualar o tempo de serviço das mulheres ao dos homens. “No Brasil, o indivíduo tem que trabalhar até os 65 anos de idade ou contribuir por 35 anos para poder se aposentar. Num mercado de trabalho marcado pela alta rotatividade, isso é inviável. Isso precisa ser repensado. É necessário atrelar a questão da jornada e do tempo de trabalho à qualidade de vida. Essa discussão tem de ser colocada, sobretudo porque inúmeras pesquisas vêm demonstrando o crescimento das chamadas doenças ocupacionais. Ou seja, as condições e o ritmo do trabalho têm influenciado cada vez mais na saúde do trabalhador”, argumenta.
O economista afirma que essas preocupações estão presentes no interior dos sindicatos. Falta, entretanto, extrapolá-las para o restante da sociedade. Ráo admite que esta tarefa não é trivial. “Para ser concretizada, ela depende de uma ação mais combativa dos próprios sindicatos em conjunto com os diferentes segmentos da classe trabalhadora. Decerto, o que tem que se afastar por completo desse movimento é a ideia de que o trabalhador brasileiro é preguiçoso e trabalha pouco. Isso absolutamente não condiz com a realidade”, sustenta o autor da dissertação, que contou com bolsa concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão vinculado do Ministério da Educação.
IHU