Nov 24, 2024

A nova geopolítica do petróleo no século XXI

 

* WILLIAM NOZAKI

 

As duas primeiras décadas do século XXI tem sido marcadas por transformações importantes na geopolítica do petróleo. Desde a década de 1970 com a consolidação da OPEP o epicentro da indústria petrolífera orbita ao redor do Golfo Pérsico, entretanto, novas estratégias nacionais e empresariais para o setor de óleo e do gás parecem fortalecer a conformação de novos centros dinâmicos para os hidrocarbonetos.

As principais descobertas petrolíferas de exploração econômica viável e promissora realizadas neste século concentram-se no continente americano, com o shale gas e o tight oil norte-americanos, o óleo das areias betuminosas canadenses e o óleo do pré-sal brasileiro. Prova disso é que em 2018, os EUA assumiram o posto de maior produtor de petróleo do mundo, com produção de mais de 11,3 milhões de barris por dia, o Canadá bateu o recorde de comprovação de reservas provadas totalizando mais de 179,6 bilhões de barris e o Brasil ingressou na lista dos dez maiores produtores de petróleo com média de 2,5 milhões de barris por dia, ultrapassando países tradicionais como Kuwait (os dados são da Agência Internacional de Energia).

Além disso, algumas das principais intervenções governamentais do setor petrolífero na última década aconteceram na Venezuela, com a estatização de campos de petróleo, plataformas, terminais e embarcações, na Bolívia, com a nacionalização de reservas de gás, refinarias, logística de comercialização e distribuição, e podem agora se estender ao México, com o recente anúncio da suspensão dos leilões de petróleo por três anos, a interdição de propostas de desestatização e a possibilidade de revisão de contratos sinalizada pelo presidente recém eleito Andrés Manuel López Obrador (AMLO). Por todos esses motivos, a América tem se tornado um território central na nova geopolítica do petróleo, mas ao que tudo indica ela não está sozinha nessa nova configuração.

De acordo com um levantamento realizado pela consultoria IHS Cera, se considerarmos as 35 maiores descobertas de hidrocarbonetos com mais de 1 bilhão de barris, além dos países americanos supracitados, encontraremos avanços significativos em países como Rússia, China, Índia e Turcomenistão, o que coloca a Ásia também no radar das novas transformações estruturais da geopolítica do petróleo. Parte dessas cobertas corresponde a petróleo tradicional e xisto, cujo vigor de oferta não é de longo-prazo, mesmo assim a Eurásia emerge como importante ofertante e o Sudeste asiático como relevante demandante. 

Nesse caso merece destaque uma mudança de mercado importante, na década de 2000 mais de 40% da demanda global de energia se concentrava na Europa e nos EUA e apenas 20% nas economias em desenvolvimento da Ásia, de acordo com as projeções essa situação, que já passa por um mudança significativa, deve sofrer uma reversão completa até 2040 com a expansão acelerada da demanda se concentrando na China e na Índia (os dados são do último World Energy Outlook – 2018).

Em outras palavras, não apenas a Ásia emerge como pólo de expansão da oferta, mas também emerge como pólo de crescimento da demanda por petróleo e gás natural, alavancando a Rússia como parceira estratégica nessa trajetória. Nesse quadro, ao que tudo indica, deve haver o aumento da demanda por derivados e a consequente necessidade de ampliação da capacidade de refino desses países. Segundo recente relatório da British Petroleum (BP), até 2040 deve haver uma demanda incremental de até 12 milhões de barris de petróleo/dia no mundo, estando um terço dela concentrada apenas na China e na Índia. No entanto, considerando as principais indústrias petrolíferas há previsão de investimentos para a construção de uma capacidade adicional de apenas 4 milhões de barris/dia. Se a capacidade adicional de produção de derivados se concentrar ao redor dessa região é possível que a Ásia também se transforme em ofertante global de derivados.

Diante desse cenário de reorganização das correlações de força no tabuleiro geopolítico do petróleo, o que se desenha é uma queda de braços entre a face oeste e a face leste do Golfo Pérsico, de um lado os EUA aprofundam ainda mais seus laços com a Arábia Saudita, de outro lado a China e a Rússia estreitam relações com o Irã, no centro dessa disputa a OPEP tenta uma vez mais exercer o seu poder de definição sobre o preço do petróleo, mas dessa vez com menos facilidade do que em momentos anteriores. Os encontros da OPEP em 2018 e a sistemática tentativa de reduzir a produção de petróleo em 1,2 milhão de barris por dia foram realizados sob clima de permanente tensão, como evidenciam a saída do Qatar do bloco e a necessidade de os país contar com a anuência de aliados de fora do grupo para fazer valer suas novas resoluções.

Em momentos de transformação como o atual inevitavelmente se reabrem os debates sobre os limites de uma fonte energética escassa e não-renovável como é o caso do petróleo, foi assim na década de 1970, quando as crises do petróleo colocaram na agenda pública o debate sobre o fim da era dos hidrocarbonetos. Não só o petróleo não se escasseou como as novas descobertas já elencadas o tem mantido no centro das disputas econômicas internacionais desse século.

A sustentabilidade ambiental e climática, assim como as possibilidades abertas pelas inovações tecnológicas, certamente são motores que impõe a necessidade de que Estados e empresas petrolíferas se debrucem sobre estratégias de transição da matriz energética. Entretanto, abaixo da ponta desse iceberg há outros motivos geopolíticos e financeiros menos nobres, e mais contraditórios, que também tem reforçado a importância crescente dessa agenda. Se o petróleo vier a acabar será menos resultado de lutas ambientais e avanços tecnológicos, e mais consequência de como a financeirização e as instabilidades em relação à determinação do preço do petróleo tem imposto a redução de investimentos em novas descobertas pelas grandes empresas petrolíferas globais.

Os planos de investimento das grandes empresas petrolíferas tem sinalizado para a paulatina redução dos aportes em upstream (fase de exploração e produção) e para a manutenção dos recursos em downstream (fase de refino e distribuição); há ainda a tendência de que as National Oil Companies (NOCs) centralizem os investimentos em novas descobertas enquanto as International Oil Companies (IOCs) concentrem os investimentos em outras etapas e nos processos de reestruturação patrimonial.   

Isso tem se dado dessa forma, pois, de um lado, a alta volatilidade dos "ciclos petrofinanceiros" no curto-prazo tem inibido novos investimentos em grandes projetos com alto risco de exploração e produção (E&P) e tem diminuído aportes em bens de capital pelas grandes petrolíferas, que tem passado a apostar em renováveis e start-ups; de outro lado, a alta temperatura no ambiente geopolítico, que deve prosseguir no médio prazo, tem alertado os principais Estados para a importância de garantirem sua segurança e defesa energética por meio da proteção ao acesso de reservas de óleo e gás.

Nesse cenário, talvez não seja precipitado imaginar que a transição energética, se ocorrer, será informada menos por uma diminuição da demanda de petróleo em função de alguma mudança tecnológica (como a propalada difusão do carro elétrico), ou orientada por pactuações ambientais e climáticas (como o Acordo de Paris e seus desdobramentos), o mais provável é que tal mudança seja informada por dois fatores. Primeiro, por uma diminuição da oferta, resultado da crescente pressão dos fundos financeiros sobre as petrolíferas para que elas tenham mais rendimentos para os acionistas e menos investimentos de risco desbravando novas fronteiras de descobertas. E, segundo, pela capacidade das grandes operadoras de petróleo assumirem um papel relevante, para não dizer protagonista, na produção de outras formas de energia que substituirão o petróleo no longo prazo.

O que ainda não parece claro é como a máquina de segurança, defesa e guerra dos países - ainda profundamente dependente do petróleo - vai receber essa tendência oriunda do mercado, se associando a ela e a estimulando ou a repelindo e a atrasando.

Em outras palavras: as questões ambientais, climáticas e tecnológicas podem influenciar na transição da matriz energética, mas certamente não a determinam, pois, antes de mais nada seus determinantes são políticos e econômicos, para ser mais preciso são geopolíticos (o longo prazo da segurança energética) e financeiros (o curto prazo dos ganhos acionários).

Colocada a questão nesses termos, o problema não é quando se chegará ao "pico" da demanda por petróleo, mas quando se chegará ao "vale" dos novos investimentos em exploração e produção de óleo e gás e, em que momento, essas grandes empresas assumirão a liderança no desenvolvimento de outras fontes de energia.

Esses elementos é que, provavelmente, vão indicar a velocidade e a viabilidade de se operacionalizar ainda no século XXI a transição da matriz energética, dito de forma metafórica esse processo não será determinado nem pelas reivindicações ambientais do Greenpeace e nem pelas inovações tecnológicas de uma Tesla, mas pela bolsa e pelas armas.  

O que resta saber é se esse conjunto de mudanças geopolíticas, nacionais e empresariais acontecerão na temporalidade de longa-duração da geologia ou na velocidade de curta-duração das finanças, mas é certo que a configuração de uma nova geopolítica do petróleo está em andamento.  

William Nozaki - É professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Possui graduação em Ciências Sociais pela USP e mestrado em Economia pela UNICAMP onde realiza o doutorado em Desenvolvimento Econômico. Atua nas áreas de economia política e brasileira pesquisando temas como crescimento econômico, concentração de riqueza e distribuição de renda.

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