Tereza Campello*
O congelamento de gastos públicos por 20 anos, aprovado pela Câmara na terça-feira 25, ameaça o conjunto de políticas que permitiu a ascensão social de milhões de brasileiros ao longo dos últimos anos, avalia a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello. “Com a PEC 241, chegaríamos em 2036, na melhor das hipóteses, com recursos que tínhamos no inicio dos anos 1990”, alerta.
Economista de formação e uma das idealizadoras do programa Bolsa Família, Campello explica que, como se trata de um setor menos consolidado no Brasil do que a saúde e a educação, por exemplo, a assistência social estará mais vulnerável às investidas do aperto no orçamento.
“A chance de o Brasil voltar ao Mapa da Fome é enorme”, afirma Campello. “Tem uma frase muito forte que diz que problema social não é erradicado. Você não erradica a fome, ela pode voltar a qualquer momento, basta descuidar dessa situação”.
CartaCapital: O que representa a PEC 241 para a assistência social?
Tereza Campello: É o enterro do que a Constituição estabeleceu como perspectiva para a política social no Brasil. No caso da assistência social, chegaremos, na melhor das hipóteses, com recursos que nós tínhamos no início dos anos 1990. É um retrocesso muito grande, considerando o quanto pudemos avançar nesse período.
De todas as políticas previstas na Constituição, eu diria que a assistência social é a mais vulnerável ao sucateamento. Apesar de ser uma área de atuação muito antiga no País, é recente a concepção de que se trata de um direito universal, de que o Estado é obrigado a ofertar esse tipo de política a todo cidadão.
Quem de fato fica vulnerável é a população mais pobre, as crianças em situação de violência, as mulheres, a população de rua. Com o congelamento dos recursos, todas as áreas serão impactadas, mas áreas mais consolidadas como política pública, a exemplo da saúde e da educação, têm mais condição de resistir. De acordo com os estudos feitos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ao final de 2036, os gastos na área social encolheriam para 0,7% do PIB. Em 2015, eles representaram 1,26%.
CC: Os estados e municípios também podem ser afetados?
TC: Sem dúvida. Na assistência social, o principal operador é o município. Está nas mãos dos prefeitos a execução das políticas sociais, a exemplo dos abrigos para crianças em situação de rompimento de vinculo familiar. O governo federal ajuda a custear, mas esse co-financiamento vai desaparecer. Acho que os novos prefeitos que assumirão em 2017 não estão cientes dessa realidade com a qual vão se deparar.
Os prefeitos precisam se dar conta que os recursos para a assistência social ficarão completamente comprometidos, pode ser preciso cortar benefícios do Bolsa Família. Hoje, há uma grande rede de assistência co-financiada pelo governo federal, que são os Centros de Referência em Assistência Social, construídos ao longo dos últimos 10 anos.
São mais de 10 mil equipamentos no Brasil que o governo federal ajuda a financiar. Esse financiamento tende a desaparecer. Se isso acontecer, será muito grave, porque todo o encargo passará a ser responsabilidade do município, já que os governos estaduais financiam muito pouco.
CC: Além da PEC 241, que outros aspectos da política de assistência social do governo Temer chamam a atenção?
TC: Se observarmos o lançamento do programa Criança Feliz, feito pela primeira-dama Marcela Temer, duas coisas despertam a atenção. Uma é o retorno do chamado “primeiro-damismo”. Com a Constituição de 1988, a assistência social passou a ser politica pública exercida por profissionais, multidisciplinares, mas com formação e competência técnica. É uma volta ao cenário anterior aos anos 1950, quando a assistência social era vista como ação filantrópica exercida pelas primeiras-damas, e não uma obrigação do Estado.
A outra questão, presente no discurso da primeira-dama, é a ideia de “ajuda”. Ela disse que fica muito feliz em ajudar os outros. A Constituição fala claramente em direitos do cidadão. Não se trata de buscar felicidade ou recompensa por ajudar os outros, é uma obrigação do Estado e precisa ser prestada de forma profissional. Não é caridade ou filantropia.
A PEC 241, por sua vez, é a maior prova do golpe. Coloca-se uma pedra em cima de tudo o que foi feito, a toque de caixa e sem discussão com ninguém. Para quê? Para consumar o golpe. Não é um golpe na presidenta, na minha opinião, é um golpe nos mais pobres.
CC: O Bolsa Família também está ameaçado?
TC: Está ameaçado sim. Teoricamente, a partir da metade da década de 2020, ele também estará extinto. Ou então o governo federal terá de fazer um mix de cortes, os serviços de assistência social ficarão muito limitados. Podemos começar a fazer as projeções de quando o Brasil retornará ao Mapa da Fome das Nações Unidas ou quando veremos um enorme contingente de jovens, crianças e famílias desassistidos, uma vez que os municípios terão muita dificuldade em manter esses serviços.
CC: O Bolsa Família sempre foi alvo de criticas de setores da elite e da classe média. Recentemente, o ministro do STF Gilmar Mendes o associou a uma “compra de votos institucionalizada”. O que explica essa reação tão visceral a uma politica social?
TC: Acho que o Bolsa Família é um símbolo maior do que ele mesmo. Quando as pessoas falam do programa, estão falando de um conjunto de políticas que estão muito além dele. Boa parte da resistência deriva da falta de informação e da ignorância. Muitos ainda acreditam que uma pessoa é pobre porque não se esforçou.
Os americanos falam muito de “loser” ou “lazy”, perdedores e preguiçosos. Esse conceito, no Brasil, não cabe. Todos os estudos de referência comprovam que os pobres trabalham muito. Essa ideia talvez faça sentido em países muito ricos, onde há muitas oportunidades e alguns cidadãos, por escolhas próprias, resolvem ficar em casa sem trabalhar. No Brasil, quem resolve não trabalhar, em geral, é filho de quem tem renda. Com a população pobre, ocorre o exato oposto. Vemos o pai, a mãe e as crianças trabalhando para garantir o sustento da família.
Esse tipo de preconceito que vem sendo nutrido, com apoio de setores da mídia, que divulgam conceitos muito atrasados, alimenta a falácia de que o pobre é preguiçoso. Não é verdade. Nos últimos anos, o Brasil praticamente erradicou o trabalho infantil. Preocupa-me muito a perspectiva de muitas crianças pobres voltarem a essa situação.
Outra tese sem o menor fundamento é dizer que os pobres querem ter mais filhos para receber mais benefícios. É uma ideia cientificamente absurda, fruto do preconceito e da ignorância. As estatísticas revelam exatamente o oposto. A taxa de natalidade caiu em todas as classes sociais, ano a ano. Considerando um período de 10 anos, entre 2004 e 2014, justamente o período em que o Bolsa Família foi construído e se expandiu, a taxa de natalidade caiu 10% na média geral, de todas as classes sociais. Entre os mais pobres, a redução foi de 17%. E entre os mais pobres do Nordeste, a taxa caiu 20%.
CC: O IPEA estima uma perda para a assistência social de 868 bilhões de reais nos 20 anos de vigência da PEC. O que, na prática, isso significa?
TC: Estão em risco 10 mil centros de referência de assistência social e especial. Outra coisa que nos apavora: parte do que é feito hoje de ação no semiárido Nordestino é de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social. Construímos 1,2 milhão de cisternas na região, mas ainda falta. Parar esse programa significa relegar à falta de água, portanto, à Idade Média, milhares de mulheres, crianças e escolas.
Isso vai continuar? É incerto. O Programa de Aquisição de Alimentos, que foi copiado por todos os países da América Latina a agora também na África, está dentro do mesmo guarda-chuva. Ele está ameaçado também? Se a PEC 241 passar, acredito que sim. Por isso eu digo: a chance do Brasil voltar ao Mapa da Fome é enorme. Tem uma frase muito forte que diz que problema social não é erradicado. Você não erradica a fome, ela pode voltar a qualquer momento, basta descuidar dessa situação.
CC: O que está por trás da PEC? Adesão irrestrita ao neoliberalismo?
TC: Com certeza. A PEC 241 parte do princípio de que o eventual desequilíbrio nas contas é fruto de gastos na área social. É mentira! O gasto na área social é bom para a economia. A redução da desigualdade é boa para o desenvolvimento econômico, o próprio Banco Mundial reconhece. No caso do Bolsa Família, a cada real gasto no programa, retorna 1,75 para a economia. Há um efeito multiplicador sobre o PIB, benéfico para a economia. Se jogar a população no abandono, na pobreza e na fome, será ruim para todos.
CC: Qual é a alternativa para equilibrar os gastos?
TC: Vários caminhos poderiam ser trilhados. Um deles é rever o conjunto das políticas de isenção fiscal. Por um período, essas renúncias representaram um esforço para dinamizar a economia, mas não surtiu o efeito esperado. As indústrias, ao invés de reduzir o preço para aquecer a demanda, se apropriaram dessa redução de impostos como lucro. Acho que essas são questões que deveriam ser pensadas logo de início, antes de querer repassar a conta da crise aos mais fracos.
* Entrevista concedida para o portal da revista Carta Capital, no dia 26/10/16.