Voltamos ao velho dilema da soberania nacional versus recolonização e submissão nacional. É disso que realmente se trata em todos os projetos legislativos que visam limites fixos e arbitrários sobre a dívida ou o gasto público. O Estado é a única expressão realmente legítima e unificadora da ação coletiva de um povo. Ou seja, um povo só é independente de fato ou protagonista do próprio destino, da própria história, se pode controlar as atividades de seu próprio Estado. O povo que tem seu destino na mão através da ação coletiva do Estado, chama-se Nação e seu Estado chama-se Estado-Nação, pois são entidades indissociáveis.
O controle democrático do povo, incluindo os mais humildes, sobre os destinos de seu Estado Nacional Soberano através de lideranças legítimas e comprometidas com esse povo é o que mais incomoda o grande capital internacional, as potências imperialistas, seus capatazes e as pessoas fanatizadas pelo seu discurso de ódio ao Estado Soberano e Democrático por meio da ideologia neoliberal ou da ideologia fascista. Especialmente se for um povo moreno, mestiço e herdeiro de uma grande riqueza, como o povo brasileiro. Novo fundo, a supremacia racial, ética ou classista ainda permeia as motivações daqueles que desejam subjugar povos ou classes consideradas inferiores.
Toda ação coletiva do Estado é realizada através do gasto público. Não existe soberania sem democrática liberdade de gasto estatal e, portanto, de endividamento e emissão de moeda pelo Estado Nacional. Um Estado-Nação que não pode gastar quando for necessário, não consegue construir forças armadas para se defender, não consegue educar seu povo, mantê-lo saudável e alimentado. Se não pode fazer isso, perde a legitimidade frente a seu próprio povo e destrói-se assim o vínculo fundamental com os cidadãos.
Esse povo que perde a capacidade de ter ação coletiva, fica abandonado, sem controle do seu próprio destino e à mercê da ganância dos mais poderosos entre seus conterrâneos e, principalmente, em relação à ganância das potências imperialistas e do grande capital internacional.
Historicamente, quando se deseja submeter um povo a um regime colonialista sem fazer guerra, busca-se convencer o povo ou sua elite de que é bom para ele limitar a ação do seu Estado através limitações legislativas arbitrárias sobre os gastos públicos, endividamento público ou emissão de moeda.
É isso que temos visto na Europa. Por séculos uma grande potência tentou dominar todo o continente submetendo as outras, França, Inglaterra, Espanha, Império Germânico e Alemanha tentaram fazer isso em muitas guerras sanguinárias. Duas delas se tornaram guerras mundiais.
Para buscar a paz, propuseram a criação da União Européia e da união monetária através da criação do euro. Mas o belo projeto não resistiu a seu primeiro teste. Como na fábula do sapo e do escorpião, o segundo sempre acaba picando o primeiro, mesmo quando isso possa lhe trazer um grande prejuízo. É o clássico suicídio pela ganância.
A união monetária acabou com a soberania de emissão de moeda e, portanto, sobre a própria dívida na periferia do euro. Essa perda de independência econômica foi feita em troca de um suposto ganho coletivo pelo compartilhamento de uma moeda comum forte e estável e, também, pela esperança de existência de solidariedade fiscal como a que existe nas grandes nações federadas como o Brasil e os Estados Unidos. A solidariedade fiscal é a única forma de legitimar a unidade territorial, pois o sistema capitalista tende necessariamente a concentrar o capital, a renda e os melhores empregos em pequenos pontos do território.
Quando a crise econômica, por meio da dívida pública, colocou as pequenas nações da periferia europeia na mão do Banco Central Europeu, o escorpião, que ainda existe dentro das grandes potências outrora guerreiras e imperialistas como a Alemanha, não resistiu e picou as pequenas nações endividadas do mediterrâneo. Na Grécia o veneno foi mais forte e seu povo foi submetido à pobreza e à humilhação através de limitações ao gasto e ao endividamento público revestidas de um verniz tecnocrático.
Se isso é grave em países pequenos e que podem contar com a cobertura de uma união confederada com liberdade de movimentação de pessoas, em um país grande e soberano o desastre pode ser muito maior e muito mais violento do que na Grécia. Nos países pequenos, a exportação geralmente é o principal componente do que os economistas chamam de demanda autônoma. Nesses o valor das exportações é geralmente um múltiplo do valor dos gastos públicos. Assim, em países pequenos, como a Grécia, a redução acentuada dos gastos públicos não afeta tanto a economia, pois ele não é um componente tão importante da demanda autônoma.
Já em países grandes, como Brasil e EUA, o gasto público é, por larga diferença, a principal demanda autônoma. Se na Grécia, o ajuste fiscal não funcionou, em um país grande certamente funcionará muito menos. Em um país grande uma pequena redução dos gastos públicos vai certamente causar uma profunda recessão, e, portanto, desestabilizar a confiança do povo em seu Estado e em si próprio, pois o Estado e suas realizações são a expressão da ação e da auto-estima coletiva do povo.
Três pequenas amostras na história brasileira de quebra de confiança entre o Estado e o povo através de limitações ao gasto público ocorreram: (1) no final da ditadura militar, quando se submeteu aos cortes de gastos exigidos pelo FMI, (2) no governo FHC também por exigência do FMI e (3) no segundo mandato do governo Dilma pela nomeação de um ministro da Fazenda de Joaquim Levy um ex-funcionário do FMI.
Quando isso acontece, perde-se o vínculo de solidariedade entre o Estado e seus cidadãos e entre os próprios cidadãos e o país fica à mercê do conflito civil. Esse processo destruiu as bases de sustentação política da ditadura militar e o povo e a elite apostaram suas esperanças na democracia evitando o conflito civil. No fim do governo FHC, a esperança depositada sobre a eleição do Lula e do PT preservou o país do conflito.
Hoje a situação é mais grave, pois o povo ainda não reconhece ninguém como capaz de empunhar a bandeira da união nacional. E, pior, o governo interino está buscando alucinadamente conseguir alguma “legitimidade” ou sustentação por meio da servidão ao mercado financeiro. Para isso está entregando todos os instrumentos de soberania econômica nacional aos dogmas do mercado. Vou me ater especificamente à iniciativa de limitar arbitrariamente o endividamento público e o gasto público em dois projetos legislativos diferentes. O primeiro já tramitando no Senado desde o ano passado por iniciativa do senador e atual Ministro José Serra e o segundo de iniciativa do Ministro Henrique Meirelles.
Em primeiro lugar, devemos lembrar que esses projetos não têm a seu favor nenhum exemplo internacional bem-sucedido. São uma jabuticaba estragada. Isso não é bom, porque, em um tema que pode afetar a vida de milhões de pessoas, precisamos ser muito cuidadosos e usar o máximo dos exemplos históricos para evitarmos erros.
Em segundo lugar, devemos lembrar que, quase certamente nenhuma das grandes potências do mundo hoje se enquadrariam a esses limites. Nos termos das propostas, nós teríamos a política fiscal, monetária e cambial paralisadas ou fortemente constrangidas em razão desses limites. Em termos práticos, esses países seriam obrigados a sofrer grave recessão e conflito social por muitos anos para poderem adequar as demandas democráticas de governabilidade e legitimidade a limites de endividamento como esse. Qual seria o grande benefício desse projeto que compensaria tal desastre? Uma suposta redução da dívida pública? Nem se fosse possível tal redução, ela seria um benefício, porque o valor total da dívida é apenas um indicador contábil com pequeno efeito econômico. Por exemplo, o Japão tem uma dívida pública de 250% do PIB e os EUA de 110% do PIB. São muito maiores do que a brasileira e em nada afetam a economia, porque suas taxas de juros são mínimas. Mas como nossos juros, para agradar os banqueiros, são os mais altos do mundo, o impacto fiscal é muitíssimo maior. O que importa não é o tamanho da dívida, mas os juros.
O pior é que não apenas a redução da dívida é uma panaceia que não resolve nada. A redução da dívida por meio de limitações dos gastos é impossível em um país grande. Completamente impossível! Em países grandes, só o crescimento econômico pode reduzir a dívida. E isso já seria verdade, mesmo se nossas taxas de juros fossem civilizadas. Com as atuais taxas de juros, irracionalmente altas, é impossível reduzir a dívida pública, sem crescimento, em qualquer hipótese teórica, por mais lunática que seja.
Nessa situação, é evidente que o objetivo verdadeiro desses projetos é destruir a soberania e os vínculos de solidariedade nacional que nos dão unidade e capacidade de defender nossas grandes riquezas como o pré-sal, a Amazônia, e nossas estatais como a Petrobras. Como qualquer economista sabe que é impossível colocar em prática esses projetos de limitação da dívida e do gasto público, a solução que poderosos que controlam de fato o governo interino nos colocarão na mesa é a de sempre: vender tudo, pré-sal, Petrobras, estatais, grandes grupos nacionais como Embraer, construtoras e, finalmente, a Amazônia.
Mas esses projetos legislativos não se limitam apenas a ser o truque, o jogo malicioso, a armadilha que nos obrigará a entregar o pré-sal, a Petrobras, nossas empresas e no futuro possivelmente as riquezas da Amazônia. No processo, até para dar legitimidade política a esse entreguismo, esses projetos, se virarem lei ou emenda constitucional, irão destruir a saúde pública, a educação e assistência social. Como sempre, sobre terra arrasada se constroem os alicerces da dominação.
Levando em consideração todas essas reflexões, propomos a rejeição dos projetos de limitação do gasto público e da dívida pública capitaneados por Henrique Meirelles e José Serra e pedimos que nossos colegas estudem a fundo as possíveis consequências, que podem ser muito mais graves do que aparentam à primeira vista.
Só com muito patriotismo, coragem e consciência poderemos resistir ao massacre que planejam contra nosso povo!